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CARTA DO LEITOR

24/10/2012

Casamento Homoafetivo II - Em resposta ao Pr. Fernando Fernandes

Nós, Dirce Pereira da Silva, 77 anos de idade, solteira, católica, orientação sexual heteroafetiva, licenciada em Pedagogia pela FUNEPE em sua 1ª Turma, Professora da rede estadual de ensino durante 50 anos, agraciada por este Município com a "Medalha Maria Chica", e Renato de Almeida Oliveira Muçouçah, 30 anos de idade, divorciado, católico, orientação sexual heteroafetiva, pai de um filho, Mestre e Doutor em Direito pela USP, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, vimos pela presente, com o devido respeito, discordar veementemente do Senhor Fernando Costa Fernandes em relação ao tema "casamento homoafetivo", em carta publicada no dia 18 de outubro pp. neste jornal, pelas razões que abaixo seguem.

Eu, Renato de Almeida Oliveira Muçouçah, afirmo convictamente que o Supremo Tribunal Federal não desrespeitou a Constituição Federal e seu artigo 226 quando considerou legal o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo. Para sintetizar a discussão, a Excelsa Corte nada mais fez senão adotar uma técnica de há muito existente no direito: julgamento por analogia. Quando uma situação social não prevista em lei surge ante o Judiciário, este deve dar-lhe solução, ao contrário do "non liquet" romano. Neste último caso, o juiz deixava de julgar pela inexistência de lei sobre o tema. A própria Constituição de 1988, e o direito brasileiro, de há muito, já não mais permitem tal situação.

Ademais, o rol do artigo 226, § 3º, é meramente exemplificativo, e não taxativo. Se dissesse que se reconhece como união estável "apenas" a relação entre homem e mulher, concordaria com os argumentos lançados pelo Pastor. No entanto, o mesmo artigo reconhece no §4º, como entidade familiar, o núcleo monoparental (ex: mãe solteira que viva com seu filho). A conversão da união estável em casamento é uma decorrência lógica da decisão do Supremo Tribunal Federal, e o Juiz Adriano Rodrigo Ponce Oliveira agiu com rigoroso acerto.

Eu, Dirce Pereira da Silva, afirmo que vivi 77 anos dentro de rígidos preceitos morais. Mas a moralidade é como a cultura – muda com o tempo, com a evolução da ciência e do pensamento. Quando moça, fui expulsa e/ou proibida de frequentar bailes no Corinthians ou no Penapolense porque era negra, e se considerava imoral a comemoração festiva entre negros e brancos. Casar-me com um homem branco seria também uma imoralidade. Tudo isso ocorreu, em termos históricos, há pouco tempo: meros 60 anos (em 1952). E disso tudo eu fui vítima. Senti na pele, na carne e na alma o que só o tempo pôde curar.

O divórcio (à época desquite) era, além de um pecado gravíssimo, algo absoluta e rigorosamente imoral. No entanto, vi o advento da Lei do Divórcio em 1977, e o conceito moral de casamento como "instituição eterna" foi desfeito. À minha época de juventude, qualquer moça decente somente poderia casar-se virgem. Se tivesse cometido o pecado da "fornicação" antes do matrimônio, seria repudiada moralmente talvez por toda uma vida, e jamais se casaria.

De que adianta dizer que não há nada contra os homossexuais, mas contra suas práticas? Eu, Dirce, poderia ser a favor do Renato divorciado, mas condenar seu divórcio? Na prática, não o aceitaria como é. Seria hipócrita. Todas as sentenças de divórcio são, pois, imorais? O divórcio é condenado biblicamente, sobretudo se houver um novo casamento. Prática sexual antes do matrimônio também é algo biblicamente condenável. Desta forma, os juízes se equivocam espiritualmente ao sentenciar um divórcio? Os Juízes de Paz cometem equívocos ao casarem civilmente pessoas já divorciadas? Os Padres e Pastores não zelam por valores morais ao celebrar casamento de pessoas que não são mais virgens?

Eu, Renato, vejo como piada sugerir que Penápolis, a "Princesa da Noroeste", venha a tornar-se uma drag queen. E se for o caso, qual o problema? Muitos dizem que a comunidade homossexual pretende implementar uma "ditadura", proibindo comentários depreciativos acerca da orientação sexual de cada um. Não concordo. Penso que os religiosos devem prosseguir com seus dogmas, mas devem ser coerentes: criticar divórcio, fornicação, homossexualidade, masturbação, enfim, tudo o que a Bíblia condena. Críticas não ofensivas, que não agridam a integridade psíquica e moral destas pessoas, mas que critiquem todos os comportamentos tidos como "errados" de forma equânime, e não como se apenas a homossexualidade fosse o pecado maior. Em verdade, uma exegese bíblica mais atual permite até mesmo a defesa da união homossexual. Quantas não foram as novas interpretações que a Bíblia ganhou nestes últimos 300 anos para aplacar o impacto das palavras lançadas contra o divórcio e o sexo antes do casamento? No entanto, independentemente desta questão, é preciso salientar que quem nos guia é a Constituição Federal e seu intérprete maior, o Supremo Tribunal Federal, e não a Carta de Paulo aos Coríntios.

Nenhuma religião é obrigada a celebrar casamento que contrarie seus dogmas. Isto é sabido. Um católico, por exemplo, não pode casar-se mais de uma vez (caso o cônjuge esteja vivo), mesmo havendo divórcio. A união que os homossexuais procuram é a civil, oriunda do Estado laico e, nas palavras do jurista Ronald Dworkin, "o Estado deve tratar todas as pessoas sujeitas a seu domínio como dotadas do mesmo status moral e político; deve tentar, de boa-fé, tratar a todas com a mesma consideração; e deve respeitar todas e quaisquer liberdades indispensáveis para esses fins" (O direito da Liberdade, 2006, p. 11). Ou seja, como cidadão qualquer pessoa deve ter idênticos direitos – inclusive o de se casar com quem ame, seja ou não do mesmo sexo, pois se trata de consideração moral estatal.

Eu, Dirce, sinto-me chocada – mesmo com 77 anos de idade – em ler que um Pastor recusará fiéis de sua Igreja caso sejam homossexuais. Não questiono a recusa do casamento, mas de fiéis. Como ainda acredito na coerência humana, penso que nenhum homossexual frequentará a Igreja Batista de Penápolis por sabê-la contra seu estilo de vida. Mas, ainda que algum homossexual por lá queira encontrar guarida, como negar-lhe apoio, conforto, mesmo discordando de suas teses? Não duvido de milagres e, para quem quiser e assim desejar, que tente mudar sua orientação. Só que, pedindo desculpas pela comparação, seria o mesmo que eu implorar a Deus para deixar de ser negra e me tornar branca. E eu não posso e não quero, porque ser branco não é melhor nem pior que ser negro: é igual. Ser heterossexual ou homossexual não é uma escolha, nem algo bom ou mau: é o que simplesmente é. Um dos primeiros passos para a verdadeira comunhão é aceitar o outro em suas diferenças e possíveis equívocos.

O Catecismo oficial da Igreja Católica (parágrafos 2357-2359) considera que algumas pessoas possuem tendências homoafetivas tão arraigadas que, em sendo impossível revertê-las, devem viver em castidade. O mesmo Catecismo afirma que, independentemente disto, tais pessoas deverão ser acolhidas com amor e respeito. Concordo com este último parágrafo. Sempre vivi em castidade não por ser homossexual, nem apenas por ser solteira, mas porque este dogma foi o grande mote de meu tempo – mote que, hoje, mira os homossexuais.

Não existe qualquer direito de personalidade superlativo em grupos minoritários como o dos homossexuais. O que estes desejam é ter os mesmos direitos que qualquer cidadão heteroafetivo, e isto o Estado ainda lhes nega. Acaso isto é ético? Isto é moralmente aceitável? Devemos rasgar nossas conquistas sociais para, como diria o Frei Casimiro (vigário de Penápolis em minha época), abandonar os planos mesquinhos da felicidade terrena e pensar apenas na vida com Deus? A religião sim foi supervalorizada em meu tempo, ao ponto de penetrar o coração para sempre. Mas só com o tempo vi que a religião não era dura como diziam. O casamento entre homossexuais é, assim, um dever de moral do próprio Estado, que deve garanti-lo a todos os seus cidadãos.

Eu, Renato, afirmo que a Constituição Federal, ao estabelecer o preceito geral contra a discriminação (art. 3º, IV), o fez para que o Estado e os particulares não submetessem cidadãos ao jugo de grupos intolerantes (e alguns religiosos, como Silas Malafaia, são repugnantemente intolerantes). O Estado não poderá, por exemplo, proibir a contratação de homossexuais, ou de mulheres grávidas, ou, ainda, deficientes físicos, idosos, etc. Os empregadores também não, afinal: estas questões têm relevância na prestação de serviço? Se houver justificativa (como, por exemplo, contratar uma pessoa de 70 anos para carregar pedras), aí não haverá discriminação.

Esta fala é interessante porque mostra o que Silas Malafaia tenta distorcer na televisão: "se você contratar uma babá evangélica para cuidar de seu filho, poderá demiti-la. Mas se contratar uma lésbica, não poderá". É mentira. Não posso dispensar uma babá por ela ser evangélica, lésbica ou coisa que o valha. No entanto, como o Brasil admite a dispensa sem justa causa, poderei simplesmente não dizer o porquê desta demissão e, caso a babá venha a processar-me, ela terá de provar que agi com preconceito (religioso ou de orientação sexual). A prova disto é quase impossível. Não adiantaria nada afirmar que sou católico e, por isto, repudiei-a por ser evangélica ou lésbica. Este é o tipo de ilação que não pode ser feita.

Sou contra qualquer ditadura no Brasil, seja ela homoafetiva (como afirma Malafaia) ou de religiosos. A Lei do Racismo tirou a liberdade de alguém? Ou uma pessoa queria ser livre para criticar e zombar de pessoas negras? Esta Lei cuidou da tentativa de criação de uma cultura mais justa e humana para com o povo brasileiro. Saber se uma pessoa nasce ou se torna homossexual é, pois, indiferente: ela merece toda consideração do Poder Público e de particulares para usufruir os mesmos direitos estabelecidos a todos os brasileiros, já que aos homossexuais são reservados idênticos deveres em relação aos heterossexuais. Até onde sei, eles pagam Imposto de Renda, IPTU, ISS, ICMS, etc., tal qual heteroafetivos.

Quando uma tia minha casou-se com um homem divorciado, ela era casta e muito religiosa. Ele, atualmente falecido, era um homem de bondade infinita, que teve a honradez de ir até meus avôs (Jesus, o Carroceiro, e Maria Isabel) explicar sua situação e dizer de suas intenções para com a moça. Casaram-se e tiveram duas lindas filhas. Em um certo dia – e agora citarei nomes – o Frei Saul Perón a "excomungou" publicamente. Disse que ela não poderia comungar porque vivia em pecado com um homem "casado". Fizeram alguns abaixo-assinados para que o novo casal não morasse em diversos lugares como, por exemplo, no Edifício Karan Zancul. Imaginem o tamanho da marca espiritual e moral deixada por um preconceito...

O preconceito – e eu, Dirce Pereira da Silva, o conheço bem – é o maior de todos os pecados. Este sim brada aos Céus. Farei 78 anos em dezembro, ciente de que tenho muito mais passado que futuro. Quando olho para trás vejo realizações incríveis, a velhice digna que pude proporcionar a minha avó e aos meus pais, que vieram todos da miséria, mas vejo também muitas risadinhas de canto de boca sobre mim. Já houve momentos em que, mais jovem, quis gritar: "venham a mim, homossexuais, deficientes, prostitutas... e saibam o que é um abraço sincero". O meu abraço sincero é tudo o que posso oferecer. Meu coração não julga; aceita. Minha alma não grita supostas verdades: acolhe e tenta entender os motivos de cada um. Eu não sou melhor que ninguém para falar em moral. Se meus quase oito decênios de castidade me tornam moralmente "melhor", eu digo: isso de nada valeria se minha alma fosse poluída com julgamentos, preconceitos e propagação de dogmas. E se eu puder deixar minha última lição a este mundo cruel, que discrimina e mata, eu diria: amem o seu próximo como a vocês mesmos. Mas amem de verdade, sem impor condições para dar este amor. Aceite sem questionar suas vidas, com um sorriso largo no rosto e um abraço verdadeiramente acolhedor, porque esse é o grande motor que aquece e gira este turbilhão chamado vida.

 

Dirce Pereira da Silva, 77, é professora aposentada, decana dos Professores da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e homenageada, em 2008, com a Medalha Maria Chica.

 

Renato de Almeida Muçouçah, 30, é Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco) e Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

 

Dirce Pereira da Silva e Renato de Almeida Muçouçah

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